Desde que o primeiro hominídeo olhou para o céu e para o mundo que o cercava e questionou quem tinha feito tudo aquilo surgiram a ciência, a religião, a magia e a tecnologia. Estas quatro coisas, que parecem distintas, mas surgem da curiosidade humana, muitas vezes, eram usadas em conjunto para explicar o mundo para diferentes audiências. Não raro no inicio da civilização, essas quatro “artes” eram desenvolvidas pelas mesmas pessoas e foi o advento da agricultura que permitiu o estabelecimento das cidades e um tempo extra para os seres curiosos prosperarem. Vejam só, a observação e o entendimento do céu, a duração do dia, nos permitiu entender quando plantar e como plantar. Não precisamos entender completamente como funcionam as plantas para fazer a agricultura florescer, o que faltava em conhecimento e tecnologia completávamos com magia e religião e criávamos um código de comportamento que permitiu que as sociedades crescessem. Vejamos um exemplo interessante na região da mesopotâmia, onde floresceu a observação do céu. Podemos falar desta região porque o seu povo, os Sumérios, desenvolveu a escrita e por isso os conhecemos tão bem. Eles desenvolveram uma religião, o zoroastrismo, baseado na observação do céu. Os sumérios perceberam o movimento dos planetas e das estrelas e, num exercício de criatividade, viram formas nas constelações e deram nomes: câncer, leão, sagitário. Esse conhecimento tanto era religioso e mágico, como também útil para a agricultura.
Desenvolveram-se para isso também conceitos de divisões de tempo e espaço gerando conceitos matemáticos que, de novo, ajudavam a programar as plantações, as cidades e as construções. O estudo destes movimentos celestes e sua influência sobre os seres vivos eles chamaram de Astrologia (conhecimento que vem dos astros), até hoje nos nossos jornais encontramos o horóscopo dizendo o que nos aguarda ao sair da proteção do lar. Mas o mais incrível é que deste estudo e seu aprofundamento temos a Astronomia, parte da física que se dedica a estudar o universo, suas leis, as órbitas dos planetas, a origem do cosmos. Muitas vezes o mesmo jornal que traz o horóscopo, traz uma matéria sobre buracos negros fora do Sistema Solar, ou um novo planeta ou cometa descoberto. Fantástico! A astrologia e a astronomia coexistem! Com algumas farpas entre elas, mas coexistem.
Assim deveria ser nossa relação com o conhecimento, mas infelizmente não é. O conhecimento é uma coisa irrequieta que mexe tudo de lugar, bagunça sistemas elegantes já bem estabelecidos, acende a curiosidade, dá asas ao “e se …????” E qual o problema disso? Isso atrapalha quem quer controlar o mundo! As pessoas que querem controlar não conseguem controlar o que cresce e se modifica sempre. E como isso se reflete na Ciência, que é a metodologia pela qual o conhecimento cresce? Esse pessoal tenta sufocar a Ciência numa tentativa de sufocar ideias, de sufocar o livre pensar.
Para podermos desenvolver mais essa ideia vamos a dois exemplos distintos, mas em seu íntimo, interligados, para tentar dar foco a nossa discussão.
Entre 324 e 330, Constantino (306–337) transferiu a capital principal de Roma para Bizâncio, conhecida mais tarde como Constantinopla (“Cidade de Constantino”) e Nova Roma. Sob Teodósio I (379–395), o cristianismo tornou-se a religião oficial do império e, com sua morte, o Estado romano dividiu-se definitivamente em duas metades, cada qual controlada por um de seus filhos. E finalmente, sob o reinado de Heráclio (610–641), a administração e as forças armadas do império foram reestruturadas e o grego foi adotado em lugar do latim. Em suma, o Império Bizantino se distingue da Roma Antiga na medida em que foi orientado à cultura grega em vez da latina e caracterizou-se pelo cristianismo ortodoxo em lugar do politeísmo romano. A Separação e transferência da Capital teve como consequência o enfraquecimento do Império Romano do Ocidente e sua posterior queda. Com estes fatos históricos marcantes, o conhecimento migrou para o leste, os manuscritos gregos e romanos e todo o grande acervo cultural da cidade de Roma foi transferido para Constantinopla e de lá, mais para o oriente ainda. Os bárbaros que invadiram Roma também saquearam suas bibliotecas e venderam muitos dos pergaminhos para o oriente, onde eles eram avidamente comprados por mercadores e homens ricos.
Com o surgimento do grande profeta Maomé (570-632 DC), o islamismo se torna uma grande potência, vindo a dominar a maior parte do oriente médio, do norte da África, a Ásia Ocidental e a península Ibérica. Todos os eruditos muçulmanos estudavam o Alcorão, texto central do Islamismo, no entanto, inúmeros destes eruditos também estavam interessados nos manuscritos que chegavam ao oriente, vindos de Roma, após sua queda em 455 e agora, principalmente, de Constantinopla. Uma “Casa de Sabedoria” foi criada em Bagdá, onde muitos desses manuscritos foram traduzidos para o árabe, o que atraiu jovens curiosos de todas as partes do Islã. As obras de Aristóteles, Euclides, Galeno e outros pensadores foram traduzidas e ficaram à disposição de muito mais gente. Sem os eruditos e as traduções islâmicas, toda ou a maior parte das obras destes pensadores basilares da ciência ocidental teriam sido perdidas, uma vez que na Europa não existiam mais. Quando a Europa retornou de seu mergulho nas trevas, em 1100, foram estes manuscritos que proporcionaram o renascimento da ciência e da filosofia.
O mais interessante e rico desta história é que aos manuscritos traduzidos se somaram os que vieram da China e da Índia, que deram contribuições inestimáveis como o papel (China), que permitiu muito mais copias dos manuscritos e os numerais (Índia). A própria álgebra nasce neste período, ela vem de um livro islâmico o al-jabr. Os pensadores islâmicos fizeram acréscimos incríveis a tudo que herdaram, calcularam o tamanho da atmosfera (muito próximo aos cálculos de hoje), estudaram os fenômenos ligados à luz, dando início a óptica como a conhecemos hoje.
A medicina islâmica revolucionou a medicina europeia. Hipócrates 460-377 AC) e Galeno (129-217) foram traduzidos, discutidos, questionados e aplicados em práticas novas. Alguns dos pensadores que beberam destas fontes também marcaram seu lugar, como Rhazes (854-925), que descreveu varias doenças e a diferença entre elas; foi o primeiro a distinguir Varíola de Sarampo. Temos também Avicenna (980-1037), médico incrivelmente inteligente e um pensador em várias áreas, tais como, filosofia, matemática e física. Corrigiu vários erros de Galeno e aprimorou as ideias de Aristóteles sobre a luz e a visão. Seu livro “Cânone da Medicina”, foi um dos primeiros livros árabes traduzidos para o latim e foi o principal livro texto das escolas de medicina da Europa por mais de 400 anos. Em 1690, o livro ainda era a base da Universidade médica de Montpellier, infelizmente ainda o é em alguns países islâmicos mais radicais, mesmo estando muito defasado dos conhecimentos atuais.
O que podemos perceber com isso é que, durante quase 500 anos, as mais importantes obras científicas e filosóficas tiveram sua origem nos países islâmicos. Enquanto a Europa dormia seu sono forçado (boa parte da Idade Media 455 – 1480), os centros mais produtivos em ciência e filosofia eram Bagdá, Cairo, Samarcanda (Uzbequistão) e Córdoba (Espanha). Estas cidades compartilhavam uma característica. Sabem qual era? Governantes esclarecidos e tolerantes que valorizavam e financiavam pesquisas, acreditavam no conhecimento independente das crenças dos pensadores.
Assim, muitos e muitos pensadores podiam vir e se juntar com os muçulmanos e produzir conhecimento para todos. Alguns dos governantes da época estavam felizes e orgulhosos com as conquistas cientificas e filosóficas deste movimento e troca. No entanto, houve uma reviravolta com a crescente onda de fundamentalismo que ocorreu devido a conquistas e guerras de unificação islâmica, alguns governantes começaram a afirmar que tudo que precisava ser conhecido estava no Alcorão e este movimento cultural foi sendo combatido e combatido ate que nas Universidades Islâmicas apenas o Alcorão pudesse ser lido e a Ciência, outrora tão rica do Islã, praticamente desapareceu. A ciência sempre gera medo e insegurança em governos autoritaristas porque busca o novo. E o novo pode causar surpresas. Um exemplo triste que nos faz pensar no momento em que vivemos, onde o fundamentalismo mais uma vez tenta obscurecer o cominho do conhecimento o caminho do novo. A este exemplo do mundo islâmico eu gostaria de adicionar uma outra história triste, elas estão interligadas, o que mostra que muitas vezes essas ondas de anti-ciência são mundiais, vem e, por felicidade um dia vão, mais infelizmente voltam.
Mais uma vez precisamos falar da queda de Roma (455) e lembrar que este ano marca o início de um período muito estranho da história do ocidente, a Idade Media (455-1490), um período que durou aproximadamente 1000 anos, que não foi todo igual, mas que de certa maneira foi bem difícil para a ciência e o conhecimento.
Como falamos antes, com a queda de Roma houve um período de grande tumulto na Europa. Neste período, forças se debatiam pra ver quem ocupava o lugar daquele grande império Romano e o resultado eram muitas e muitas guerras, muita e muita destruição e perda de material escrito, que já era pouco – não tínhamos ainda nem papel e nem gráficas ou editoras.
Pra piorar tudo, havia uma crescente força estruturada que, apesar de não ser um império como o conhecemos, era sim um império de regras e conceitos que se afirmava com a maior organização multinacional da época, a Igreja Católica do Ocidente ou Romana e, no seio desta organização, surgiu um pensador, Santo Agostinho (354-430), que dominou o pensamento cristão da época, uma de suas regras era: “A verdade está mais no que Deus revela do que nas conjecturas (dúvidas e investigações) dos homens que andam às escuras”. Durante os anos 500 a 1000 foi esta a regra a ser seguida por quem queria ser filosofo ou pensador, repetir e repetir
Galeno e Aristóteles, sem questionar, sem acrescentar e lembrando que muito pouco deles tinha sobrevivido na Europa e que muito poucos liam em grego ou latim. Imaginem o que acontece com a Ciência quando acreditamos que tudo já foi descoberto e que nada de novo merece ser visto? Ela fica estagnada e quase morre. E foi o que aconteceu!
A Idade média geralmente se divide em Alta Idade Média (século V ao IX ) e Baixa Idade Média (século X ao século XIV). Podemos dizer que do ano 1000 pra frente, os livros árabes começaram a circular pela Europa e, com eles, o retorno de alguns dos manuscritos perdidos ocorreu. Os monastérios foram muito importantes neste momento pois era lá que as novas traduções eram guardadas, mas só eram liberadas para quem a Igreja permitia. No entanto estavam germinando centros de conhecimento, as Universidades!
Foi apenas com a chegada do segundo milênio da era cristã que alguma luz conseguiu varar as trevas. Com a chegada em cena de São Tomás de Aquino (1225-1274), o maior teólogo medieval, admirador de Aristóteles, que combinou o pensamento cristão com a filosofia grega e recuperou para Europa o pensamento de Galeno, Euclides (?-300 AC) e Ptolomeu (90-168). Tomás de Aquino modelou a mente medieval!
Mas voltemos às Universidades. Em 1088, o Papa Urbano II autorizou a criação da Universidade de Bologna, a mais antiga da Europa. Mas logo em seguida vieram as de Pádua, Montpellier, Paris, Colônia, Oxford e Cambridge, todas iniciadas pela Igreja, mas assumidas rapidamente por seus municípios e mantidas por reis e famílias ricas filantrópicas. Esses centros de conhecimento receberam o nome de Universidade que em latim significa “o todo”. Sim, o todo do conhecimento da época! Eram divididas em 4 faculdades ou escolas: Teologia (a rainha das ciências), Medicina (incluía astrologia devido à crença da influência dos planetas sobre a saúde humana), Artes (música, matemática, astronomia e alquimia) e Direito.
Em 1340, com a chegada da peste negra, uma outra instituição surgiu e contribuiu em muito para o desenvolvimento das ciências ligada à saúde, os Hospitais, onde ficavam os doentes e onde muita experimentação e observação foi feita. Podemos dizer que Universidades e Hospitais foram grandes contribuições surgidas na Idade Media.
Muitas ideias novas surgiram em todas as áreas e fizeram um tumulto na cabeça de que gostava de conhecimento organizado e invariável. Essa maré de coisas novas gerou a crença de que novas ideias nem sempre são boas e, portanto, devem ser evitadas, que o antigo e já conhecido é sempre melhor. Surge um incômodo, porque as novas ideias muitas vezes desorganizam e até destroem sistemas elegantes de organização do universo. Mas quando pensamos nos últimos 700 anos, vemos que o conhecimento cresceu exponencialmente e, se considerarmos os últimos 100 anos, quando passamos de viagens em navios de madeira a vela para naves espaciais chegando a Marte, Uau!!! Pensem no que era a comunicação, cartas levadas a cavalo para mensagens quase instantâneas em telefones celulares, os próprios telefones celulares! E por que o medo do conhecimento que a ciência traz? Porque conhecimento é poder, poder de questionar, poder de buscar uma vida melhor, poder de criar um mundo melhor, tudo o que as pessoas que vivem do domínio e da opressão de pessoas ignorantes querem é a sua manutenção no poder. O conhecimento nos faz entender o Universo e o nosso lugar no Universo, não deixando espaço para o medo e para a subserviência. Tentar tirar a ciência de foco e tentar manter o maior número de gente na escuridão da ignorância sem saber seu potencial, seu papel e sob o tacão de quem detém a força. Só o conhecimento liberta! E tudo que os fundamentalistas mais temem são mentes e espíritos livres!